Fonte: Revista Consultor
Jurídico (CONJUR) – 14.09.2016
Por Cristiano Heineck
Schmitt
Submetido ao tema repetitivo 952, será julgado pela 2ª Seção do Superior
Tribunal de Justiça o Recurso Especial 1.568.244/RJ, que envolve a análise da validade
das cláusulas contratuais que tratem de aumento da mensalidade em razão da
mudança de faixa etária do usuário de planos e de seguros de assistência
privada à saúde.
Em face de um grande número de recursos
especiais, com fundamento em idêntica questão de direito, evidenciando a
amplitude da controvérsia, entendeu o ministro Villas Bôas Cueva acolher a
indicação da corte de origem, o Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, e
promover a afetação do tema, submetendo o feito à sistemática de processamento
de recursos repetitivos.
No caso, foi facultada a
manifestação da Defensoria Pública da União, da Agência Nacional de Saúde
Suplementar (ANS), da Federação Nacional de Saúde Suplementar (FenaSaúde), do Instituto
de Estudos de Saúde Suplementar (Iess)) e do Instituto Brasileiro de
Defesa do Consumidor (Idec). Para esse propósito, solicitou ingresso, como amicus
curiae, o Instituto Brasileiro de Política e Direito do Consumidor
(Brasilcon).
Diante da afetação do Recurso
Especial indicado, restaram suspensos,
na segunda instância, o andamento dos recursos especiais com mérito idêntico.
Com a decisão final do STJ, obter-se-á uma única solução aplicável às
causas que versem sobre a mesma situação.
O mercado de assistência privada
à saúde, entenda-se, contratos de planos e de seguros de saúde, revela uma
típica relação de consumo, com a presença bastante nítida do consumidor,
usuário do serviço e do fornecedor, que pode ser uma seguradora, cooperativa,
administradora etc. Nesse sentido, registra-se a Súmula 469 do STJ, que
reconhece o status consumerista dessa relação negocial.
E, uma vez detectada a relação de
consumo, é imprescindível que seja incidente sobre a mesma o conjunto de regras
consubstanciado no CDC (Lei 8.078/90). Sendo consumidor o usuário do sistema de
planos e de seguros de saúdem, este também é vulnerável consoante preconiza o
artigo 4°, inciso I do CDC. Além desse diploma legal, são também aplicáveis às
disposições da Lei 9.656/98, que trata especificamente dos contratos de
assistência privada à saúde, bem como as resoluções, portarias, e determinações
administrativas, provenientes da ANS e do Conselho Nacional de Saúde
Suplementar (Consu). Cabe registrar, também, a necessária presença do Estatuto
do Idoso, Lei 10.741/03, bastante utilizado na interpretação desses tipos
negociais.
A ANS, órgão vinculado ao
Ministério da Saúde, é incumbida da fiscalização, regulamentação e
monitoramento do mercado de contratos de planos e de seguros de assistência privada
à saúde. Essa agência foi criada pela Lei 9.961/2000 e detém também a
responsabilidade pelo controle dos aumentos de mensalidade dos referidos
contratos. A razão para o referido controle reside no fato de que,
especialmente os contratos de planos de saúde ajustados com pessoas físicas,
necessitam de uma proteção especial, em face do reduzido poder de negociação
frente a uma operadora. Outrossim, analisando-se o rol de serviços e produtos
colocados no mercado, à disposição do consumidor, notoriamente nenhum deles é
mais essencial do que aqueles voltados à preservação de sua saúde e, por
consequência, de sua vida.
Diante de um arcabouço normativo
bastante extenso, acrescido de inúmeras orientações colhidas junto à
jurisprudência emanada dos tribunais, mister se faz ao caso utilizar-se da
teoria do “diálogo das fontes”[1], por
meio da qual podem ser combinadas alternativas normativas derivadas de
leis distintas. Assim, os critérios tradicionais de soluções de antinomias
legais cedem espaço a uma proposta diferente, através da qual, combinando-se
regras variadas, pode ser alcançado, por exemplo, o melhor nível de proteção do
sujeito especial presente na relação negocial, e que é o consumidor. Afinal, é
o texto constitucional de 1988 que assevera o dever do Estado na proteção desse
indivíduo, inclusive, sob a ótica de direito fundamental[2].
Quando os contratos de
assistência privada à saúde são levados a juízo, é possível colher-se um rol
significativo de situações que envolvem debates em torno de limites de
coberturas, de rescisões unilaterais de contrato, e, como é o tema in casu,
de reajustes de mensalidades por motivo de alteração de faixa etária.
A respeito de reajustes do valor
da mensalidade de um plano ou seguro de saúde, estes podem ocorrer em até
quatro situações: pela necessidade de atualização da mensalidade decorrente da
variação dos custos assistenciais, em decorrência de uma reavaliação do plano,
designada como “revisão técnica”; por motivo de sinistralidade, e em face da
mudança de faixa etária do consumidor. Um mesmo plano de saúde pode sofrer mais
de um tipo de reajuste em um mesmo ano, o que, por lógico, torna a sua
prestação bastante elevada.
No que tange ao reajuste por
mudança de faixa etária, tema objeto da presente análise, a sistemática de
funcionamento dos contratos de planos e de seguros de assistência privada à
saúde admite uma diferenciação do valor das mensalidades de acordo com a faixa
etária do consumidor, o que se dá porque presumidamente a frequência de
utilização varia conforme a idade do indivíduo. Nesse sentido, quanto mais
velho o usuário, maior é a probabilidade do uso dos serviços de saúde.
Existem regras para a aplicação
de aumento por mudança de faixa etária que obedecem à Lei 9.656/98, ao Estatuto
do Idoso, em vigência desde 1º de janeiro de 2004, e à normatividade expedida
pela ANS. Por lógico, como já mencionado, diante da natureza consumerista da
relação contratual em evidência, é inseparável a presença do CDC, especialmente
no que tange a abusos praticados contra o consumidor.
A partir da vigência do Estatuto
do Idoso, Lei 10.741/03, o que ocorreu em 1º de janeiro de 2004, a regra
contida no parágrafo 3° do seu artigo 15, que proíbe a discriminação do sujeito
com mais de 60 anos e usuário da saúde suplementar, gerou um profundo impacto
na questão envolvendo reajustes por mudança de faixa etária. Essa normatividade
inspirou, inclusive, a edição da Resolução Normativa 63, de dezembro de 2003,
da ANS, e que determinou o número de dez faixas etárias que passaram a ser
obrigatórias nos contratos da espécie abordada:
1ª faixa: de 0 a 18 anos;
2ª faixa: de 19 a 23 anos;
3ª faixa: de 24 a 28 anos;
4ª faixa: de 29 a 33 anos;
5ª faixa: de 34 a 38 anos;
6ª faixa: de 39 a 43 anos;
7ª faixa: de 44 a 48 anos;
8ª faixa: de 49 a 53
anos;
9ª faixa: de 54 a 58 anos;
10ª faixa: de 59 anos ou
mais[3].
Nesse sentido, pode-se concluir
que o Estado, diante da legislação emanada, não pretendia ver mais pessoas
idosas convivendo com reajustes por mudança de faixa etária após os 60 anos de
idade. No entanto, esse cenário é de fácil resolução quando se trata de
contrato ajustado após o advento do Estatuto do Idoso. Contudo, a questão
pendente envolve a situação dos contratos celebrados anteriormente a essa data.
No caso, a aplicação do Estatuto do Idoso a estes geraria o debate acerca
da retroatividade da lei a negócios entabulados anteriormente a sua
vigência.
Nessa seara, bastante incisivo
sobre o assunto foi o resultado do julgamento do Recurso Especial 809.329/RJ,
de relatoria da ministra Nancy Andrighi e apreciado pela 3ª Turma do Superior
Tribunal de Justiça, que afastou qualquer possibilidade de reajuste por mudança
de faixa etária a consumidor com mais de 60 anos, ainda que seu contrato fosse
anterior ao Estatuto do Idoso. Em verdade, o principal fundamento adotado pelo
Superior Tribunal de Justiça para entender como abusivas quaisquer tentativas
de aumento por mudança de faixa etária para indivíduos com 60 anos de idade, ou
mais, é Estatuto do Idoso (Lei 10.741/03) que, por meio do parágrafo 3° do
seu artigo 15, estaria afastando tal possibilidade, sendo que essa norma passou
a viger a partir de janeiro de 2004. Dessa forma, o Superior Tribunal de
Justiça, em prol da proteção dos indivíduos hipervulneráveis, como são os
idosos, permite o uso da proteção ventilada pelo Estatuto do Idoso, mesmo em
contratos celebrados anteriormente à sua vigência. Logo, a aplicação do
Estatuto do Idoso, como também da Lei de Planos de Saúde, a contratos
anteriores às respectivas vigências, atesta a hermenêutica consubstanciada na
teoria do “diálogo das fontes”.
E, acerca dos idosos, cabe
destacar o inciso IV do artigo 39 do diploma consumerista pátrio, que tacha
como prática abusiva o fato de o fornecedor prevalecer-se da fraqueza do
consumidor em razão da sua idade ou da sua saúde. No caso do reajuste por
mudança de faixa etária, aceitar o valor imposto ainda é uma solução menos
drástica ao consumidor idoso, pois pior seria ter que abandonar o plano e
submeter-se a uma nova operadora, e, provavelmente, a novos períodos de
carência, sem cobertura para tratamentos.
Contudo, há orientação no âmbito
do próprio STJ esboçando tese divergente. Assim, há também julgados
permitindo o reajuste por mudança de faixa etária, em contratos de planos de
saúde, mesmo em se tratando de consumidor idoso, desde que observados
requisitos como a previsão do aumento no instrumento negocial, bem como o fato
de esse não ser desarrazoado, onerando demasiadamente o segurado[4].
Talvez o tema remetido à
técnica do recurso repetitivo não se coadune com essa proposta. Cada plano de
saúde possui suas peculiaridades, e cada usuário, uma capacidade
individual de contribuição. Um reajuste de 100% de aumento, por exemplo, para
um usuário cuja mensalidade transite entre R$ 200 e R$ 300, tem a aptidão de
ser menos impactante do que um reajuste de 50% aplicado sobre um plano cujo custo
seria de R$ 2 mil ao mês.
Tem-se aí, portanto, um tema que
não se compatibiliza com a ideia de generalidade. Não somos contrários ao
reajuste por mudança de faixa etária, tendo em vista o potencial agravamento do
risco à saúde com a passagem do tempo. Contudo, essas majorações não podem
representar barreiras à continuidade do negócio por parte do usuário, em
especial, quando idoso, justamente quando sua capacidade contributiva vai se
tornando limitada em razão da diminuição da atividade laboral remunerada.
Além disso, seria um cenário de grande injustiça a geração de um valor
exorbitante a um usuário com um histórico de anos de contribuição ao plano, ou
ao seguro de saúde, obrigando-o a se retirar do sistema e passar a
depender da combalida saúde pública.
Portanto, nossa opinião é que,
não sendo fixados limites razoáveis acerca de reajustes por mudança de faixa
etária, ao menos no que tange ao idosos, deve ser afastada qualquer tentativa
de majoração. Do contrário, o que se observará é uma massa de sujeitos coagidos
economicamente, vendo-se forçados a abandonar o contrato de plano de saúde, e
gerando um outro deficit social, pois se tornariam usuários imediatos do
SUS, sistema que sequer consegue operar com a demanda atual.
No qua tange ao julgamento do tema
repetitivo 952, esperamos que possa ser afastado o reajuste por mudança de
faixa etária após os 60 anos de idade, ou, alternativamente, sendo o mesmo
viabilizado, que este não possa gerar onerosidade excessiva ao contrato,
prejudicial ao consumidor, e nem se torne cláusula barreira à continuidade do
vínculo por parte do consumidor idoso. Somente assim estar-se-á conferindo
correta aplicação às normas de proteção do sujeito vulnerável do mercado. No
caso do idoso, um hipervulnerável que demanda cuidado diferenciado.
[1] Atribui-se
a criação da aludida teoria ao professor alemão Erik Jayme, tendo a mesma
recebido importante contribuição de Marques. Nesse sentido, SCHMITT, Cristiano
Heineck; MARQUES, Claudia Lima. Visões sobre os planos de saúde privada e o
Código de Defesa do Consumidor. In: Saúde e Responsabilidade 2 – a nova
assistência privada à saúde. SCHMITT, Cristiano Heineck; MARQUES, Claudia
Lima, LOPES, José Reinaldo de Lima PFEIFFER, Roberto Augusto Castellanos
(coord.). São Paulo: Revista dos Tribunais, 2008. p.149.
[2] Vide artigo
5º, inciso XXXII da CF/88.
[3] Contemplando
as referidas faixas etárias, há o artigo 2° da Resolução Normativa 63 da ANS de
22/12/2003.
[4] Nesse
sentido, veja-se Superior Tribunal de Justiça, Recurso Especial
866.840/SP.
Revista Consultor Jurídico,
14 de setembro de 2016, 8h05