Fonte: Tribunal Regional
Federal da 1ª Região – 12.06.2015
A comunidade médica é
unânime ao defender a necessidade de observância às restrições de uso de
medicamentos que podem causar danos à saúde. Ainda assim, erros provocados
pelos próprios médicos ou pelos pacientes acabam provocando sérios problemas e
transformando o que seria a solução do mal em um vilão ainda mais perigoso.
Mesmo quando não há falha desses dois agentes principais, o medicamento, em si,
pode assumir um protagonismo letal. Um produto aparentemente inofensivo, o óleo
mineral, usado há décadas como laxante por adultos e crianças, quase tirou a
vida de um bebê de apenas oito meses de idade. A vítima é filha de um casal de
médicos cardiologistas, de Salvador, na Bahia, que ajuizou ação na Justiça
Federal e obteve decisão favorável, confirmada pelo Tribunal Regional Federal
da 1ª Região.
No processo, o laboratório farmacêutico fabricante do medicamento foi condenado
a indenizar em R$ 50 mil a família da criança acometida de pneumonia lipoídica.
Entre as causas da doença está a aspiração interna do óleo mineral já ingerido
– numa espécie de refluxo –, que acaba penetrando os alvéolos e comprometendo o
funcionamento dos pulmões, podendo levar o paciente a um quadro grave de
insuficiência respiratória. A União e a Agência Nacional de Vigilância
Sanitária (Anvisa) foram condenadas no processo, também no valor de R$ 50 mil,
por não fiscalizar a comercialização do produto sem a divulgação de informações
claras sobre os riscos para determinados grupos, entre eles as crianças menores
de um ano e os portadores de refluxo gastroesofágico.
O laboratório havia sido condenado, em primeira instância, pela 3ª Vara Federal
em Salvador/BA, com base no Código de Defesa do Consumidor (CDC), na Lei
6.360/76 e no Decreto 79.094/77, que disciplinam o conteúdo do rótulo e da bula
dos medicamentos. “Todo produto deve ter a informação de forma clara e precisa
para o consumidor”, explica a advogada especialista em Direito do Consumidor,
Helena Lariucci. “O CDC diz que o consumidor tem que ter a plena e total
ciência do que ele está adquirindo (...) para usar aquele produto de uma forma
mais segura”, completa.
Ao proferir a sentença, o juiz federal responsável pelo caso se valeu de um
exame anatomo-patológico realizado pela Universidade de São Paulo (USP), de
parecer técnico da Anvisa sobre o óleo mineral, do depoimento da médica que
atendeu à criança e de matérias de fontes especializadas para identificar a
relação direta entre o remédio e a pneumonia, para concluir pela culpa objetiva
do laboratório: situação em que a culpa pelo dano decorre do próprio risco da
atividade desenvolvida pela empresa (na hipótese, a fabricação de
medicamentos). O laboratório, a União, a Anvisa e os pais do bebê recorreram da
sentença ao TRF1 – estes buscando o aumento do valor da indenização, por
considerarem que a doença poderia deixar sequelas, não comprovadas no processo,
no sistema respiratório criança.
Recurso
No recurso apresentado ao
TRF1, o laboratório alegou que a sentença foi irregular porque o juiz teria se
baseado, também, em informações extraoficiais que apontam a contraindicação do
remédio para recém-nascidos. O estudo da Anvisa, citado pelo magistrado,
contrário à indicação do óleo mineral em bebês, seria inconclusivo, segundo a
defesa, e voltado apenas à comunidade científica. O laboratório também defendeu
não haver provas de que o produto seja prejudicial aos recém-nascidos nem de
que cause pneumonia lipoídica. Dessa forma, asseverou que o juiz “assumiu o
papel de órgão fiscalizador”, com base, também, no que chamou de “simples
alerta” da Anvisa sobre os riscos do medicamento.
Já a União tentou afastar sua responsabilidade no conflito, alegando que só
poderia ser responsabilizada de forma subjetiva, o que iria requer a
comprovação de dolo ou de culpa por parte da Administração. A Anvisa, por sua
vez, questionou sua omissão culposa e afirmou que o exame pericial não
demonstrou nexo de causalidade entre uso do produto e a pneumonia lipoídica e
sustentou que a doença também poderia ter sido causada por outros fatores, como
a aspiração do leite em vez do óleo mineral. O órgão atribuiu a culpa
exclusivamente aos pais da vítima pela escolha do médico que prescreveu “dose
excessiva” do remédio. Também alegou não haver responsabilidade solidária entre
a União e a Anvisa, por falta previsão legal nesse sentido ou de contrato
firmado entre as duas partes.
Decisão
Ao analisar o caso, o
relator do recurso na Sexta Turma, desembargador federal Daniel Paes Ribeiro,
considerou correta a sentença no que diz respeito ao pagamento da indenização.
O magistrado frisou que, para formar sua convicção sobre determinado tema, o
juiz não precisa se valer unicamente do laudo pericial, podendo utilizarse de
outros elementos e Depois do ajuizamento da ação judicial, o fabricante do óleo
mineral passou a informar, na bula do remédio, as contraindicações para: fatos
constantes no processo, conforme previsto no artigo 436 do Código de Processo
Civil. “Na espécie, constam dos autos elementos suficientes a demonstrar o nexo
de causalidade entre o uso de óleo mineral e o padecimento a que foram
submetidos o menor e seus genitores”, frisou o relator.
O magistrado esclareceu que o laudo da perícia, por si só, já indica a
ocorrência inequívoca da doença, considerada grave pelos pediatras. “Não se
trata de confusão diagnóstica a partir da biópsia – a qual comprova que houve
pneumonia lipoídica – mas, sim, da possibilidade de uma infecção respiratória,
em adição à pneumonia lipoídica, suspeita esta que nasce da análise global do
caso, incluindo a observação de que a vítima, antes do uso do óleo mineral, era
já uma criança com sintomas respiratórios, apresentando-se com resfriados
frequentes e persistentes”, concluiu a perita. “Como se vê, não foi afastado o
quadro de pneumonia lipoídica, mas acrescentada, a este, a possibilidade de ter
ocorrido infecção respiratória conjuntamente”, afirmou o relator.
A relação entre a enfermidade e o óleo mineral foi apontada pela médica que
atendeu a criança assim que ela apresentou os primeiros sintomas. Mesmo diante
de uma doença de difícil diagnóstico, por se apresentar de forma semelhante a
várias outras patologias, a médica explicou, em depoimento, que há diferenças
entre a aspiração do óleo e de outras substâncias, como o leite, por exemplo.
“O leite materno, quando é aspirado, não é visualizado nos raios X, a não ser
que a criança faça uma pneumonia secundária bacteriana”, afirmou a pediatra.
“Já a inflamação decorrente do óleo mineral produz imagem radiológica”,
completou. A médica informou, ainda, que o exame radiológico “jamais poderia
ser sugestivo de infecção viral”, como defendia o laboratório.
Falta de informações
O desembargador federal
Daniel Paes Ribeiro citou, ainda, o parecer elaborado pela Anvisa indicando o
remédio como provável causador da pneumonia. Isso porque a criança já
apresentava um quadro de Refluxo Gastro Esofágico (grau III), e outros fatores
de risco podem, apenas, ter contribuído para o agravamento do quadro clínico. A
Anvisa esclareceu que, apesar de à época dos fatos ser comum entre os médicos a
ideia de que o óleo mineral era inofensivo à saúde – e livre de prescrição –,
seria necessária a divulgação da informação de que o uso do produto deve ser
evitado em crianças pequenas.
Em agosto de 2001, a Anvisa divulgou um alerta terapêutico, na internet,
informando os riscos do óleo para menores de dois anos (administração retal),
crianças de até seis anos (por via oral) e idosos. Já a perita designada pelo
juiz de primeira instância opinou pela manutenção do medicamento no mercado
desde que os usuários fossem advertidos de suas restrições. Somente depois do
ajuizamento da ação, ocorrido em 2002, o laboratório passou a emitir as informações
na embalagem e na bula do remédio.
Diante dos fatos e do conjunto probatório sobre o qual se baseou a sentença, o
relator do caso no TRF1 manteve a condenação imposta ao laboratório, que deverá
pagar R$ 50 mil de indenização por dano moral, sendo R$ 25 mil para a criança e
R$ 25 mil para os pais. A União e a Anvisa também deverão indenizar a família
no mesmo valor e nas mesmas condições, mas o desembargador afastou a
responsabilidade solidária entre os dois entes públicos ao acolher o argumento
da agência reguladora de que não há previsão legal ou contrato firmado entre as
partes que justifique a solidariedade.
Por fim, o pedido de revisão do valor da indenização, feito pelos pais da
criança – que inicialmente haviam pedido uma condenação total de R$ 2 milhões
–, foi negado pelo magistrado, que teve o voto seguido integralmente pelos
outros dois julgadores da Sexta Turma. “Os valores fixados a título de
indenização por danos morais atendem aos critérios de razoabilidade e
proporcionalidade, não havendo razão para que sejam modificados”, finalizou
Daniel Paes Ribeiro.
Ricardo
Cassiano
Assessoria de Comunicação
Social
Tribunal Regional Federal
da 1ª Região
* imagem meramente
ilustrativa (retirada da internet)